Cuida-se a Ação Civil Pública, com pedido de liminar, proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO em desfavor do ESTADO DE MATO GROSSO, visando à suspensão dos efeitos de dispositivos da Lei 9.523/2001 que instituiu a política de Planejamento e Ordenamento Territorial do Estado de Mato Grosso, sob o argumento de que, comparada a ato administrativo, está viciada pela forma e motivos, o que a invalida, e justifica a argüição pela via desta ação.
Alega o autor que a lei em questão trouxe no seu bojo, como instrumento principal, o Zoneamento Socioeconômico Ecológico e, por se tratar de zoneamento ambiental (latu sensu), a forma, ou seja, o rito procedimental a ser adotado está definido no Decreto Federal 4.297/02 que, enquanto regra geral, veio regulamentar o art. 9º, inciso II, da Lei no 6.938/81 ao passo que o motivo, enquanto circunstância fática que lhe deu suporte, é representado pelos estudos e diagnósticos técnicos que possibilitaram sua elaboração.
Os estudos técnicos que teriam dado lastro à elaboração do Zoneamento Socioeconômico Ecológico, inserido na Lei estadual 9.523/2011, segundo as argüições ministerial, são inconsistentes, além de se mostrarem repletos de erros metodológicos, posto que não foram atendidas as normas procedimentais previstas no Decreto Federal 4.297/2002.
Essas circunstâncias, sustentou o Ministério Público, viciam, ao mesmo tempo, a forma e o motivo do ato e, portanto, invalidam o Zoneamento Ecológico Socioeconômico.
Argumentando a presença dos requisitos autorizadores, requer a concessão de liminar para que seja determinada a imediata suspensão dos efeitos daqueles dispositivos apontados na inicial, até que seja julgado, definitivamente, o mérito desta demanda.
Instruiu os autos com os documentos de fls.104-1162.
Instado a se manifestar a respeito do pleito liminar (fls. 1164), o Estado de Mato Grosso, por meio do seu procurador (fls. 1168-1180), sustenta o descabimento da ação civil pública para impugnar o ato legislativo; que os vícios apontados poderiam, em tese, caracterizar inconstitucionalidade; defende a ausência de interesse processual e, no mérito, argumenta a ausência de plausibilidade do direito invocado e a presunção de legitimidade do ato administrativo, requerendo, portanto, seja indeferida a liminar pleiteada.
É o que merece registro.
DECIDO.
A questão sobre a qual versa a lide é, de fato, de grande relevância para o Estado de Mato Grosso no aspecto não só ambiental, mas também econômico e sociopolítico, porquanto diz respeito ao zoneamento como instrumento fundamental para a política de planejamento e ordenamento territorial que, como se sabe, em nosso Estado, gera inúmeros conflitos e questionamentos nas mais diversas áreas, em razão do interesse privado que, na hipótese, vem tomando dimensões maiores que deveria, em detrimento do interesse coletivo e, sobretudo do vital interesse ambiental.
A pretensão do Ministério Público é de toda louvável, porque visa à legalidade e lisura na política desse planejamento territorial.
Antes, porém, de adentrar à análise da existência ou não dos requisitos autorizadores da concessão da medida liminar vindicada, é preciso caracterizar a natureza da norma combatida, para que não reste dúvida alguma da legitimidade do Ministério Público de contestar seu teor em juízo, ou da adequação da via eleita para tanto.
Um dos princípios mais fundamentais do estudo das leis são suas características; toda norma legal que inova no mundo jurídico deve ter caráter abstrato, geral e hipotético. A Lei 9.523/2011, todavia, é formalmente uma lei de efeitos concretos e, substancialmente, um verdadeiro ato administrativo, já que não apresenta nenhuma das características de norma jurídica a não ser sua promulgação por órgão competente e as etapas legislativas. A lei institui, entre outras providencias, a “Política de Planejamento e Ordenação Territorial do Estado de Mato Grosso”, delimitando os espaços geográficos das categorias e subcategorias de uso, gerando, daí, efeitos concretos, posto que assim, vincula conteúdos materialmente administrativos, produzindo efeitos imediatos, dispensando qualquer outro ato para se tornar concretamente eficaz . Portanto, não possui o caráter de generalidade e de abstração comum à maior parte das leis existentes.
A propósito, tem-se a lição do renomado Hely Lopes Meirelles:
Por leis e decretos de efeitos concretos entendem-se aqueles que trazem em si mesmos o resultado específico pretendido (...). Tais leis ou decretos nada têm de normativos; são atos de efeitos concretos, revestindo a forma imprópria de lei ou decreto por exigências administrativas. Não contém mandamentos genéricos, nem apresentam qualquer regra abstrata de conduta; atuam concreta e imediatamente como qualquer ato administrativo de efeitos individuais e específicos, razão pela qual se expõem ao ataque pelo mandado de segurança (RT 242/314, 289/152, 291/171, 441/66) (pela ação popular e pela ação civil pública também) (grifamos)
É evidente que a Lei 9.523/2011, que instituiu a “Política de Planejamento e Ordenação Territorial do Estado de Mato Grosso”, é ato normativo de efeito concreto. Desta forma, sendo, tão-somente lei de efeito concreto, com o correspondente resultado previamente determinado, contendo deliberação específica, e que se materializa em mero ato administrativo revestido das formalidades inerentes à Lei Ordinária, eis que carece de generalidade e abstração comum a maior parte das leis existentes, inquestionável é a possibilidade de sua invalidação pelo Poder Judiciário, através da presente Ação Civil Pública.
Pois bem, uma vez demonstrada a adequação da via eleita pelo órgão ministerial, se impõe a análise dos requisitos para a concessão do pedido liminar.
O Ministério Público apontou vícios de forma e motivo do ato impugnado, a fim de justificar o fumus boni juris, e, após uma detida e minuciosa análise de toda a documentação trazida aos autos, vejo que razão assiste ao Parquet.
Pois bem. É bem verdade, porquanto ficou demonstrado à satisfação, que existem dois procedimentos distintos que desaguaram na lei em questão. Um primeiro, realizado pelo Executivo e outro pela Assembleia Legislativa, e é sobre este último que o Ministério Público contesta os pontos que constituíram os vícios objeto da ação.
Em que pesem os ensinamentos doutrinários, fiel entendimento sobre o conceito e objetivo do Zoneamento Socioeconômico Ecológico, se extrai dos art. 2º e 3º, respectivamente, do Decreto Federal n. 4.297/02, que diz:
“Art.2º... Instrumento de organização do território a ser obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e atividades públicas e privadas, estabelece medidas e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade ambiental dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a melhoria das condições de vida da população.” (grifamos)
“Art. 3º. O ZEE tem por objetivo geral organizar, de forma vinculada, as decisões dos agentes públicos e privados quanto a planos, programas, projetos e atividades que, direta ou indiretamente, utilizam recursos naturais, assegurando a plena manutenção do capital e dos serviços ambientais dos ecossistemas.” (grifamos)
Da leitura do texto legal, é fácil concluir que o ZEE é um instrumento inteiramente voltado para a melhoria da questão ambiental e totalmente comprometido com a manutenção do capital e dos serviços ambientais dos ecossistemas, sobretudo com o desenvolvimento sustentável. Sendo assim, a análise dos vícios apontados na lei pelo Ministério Público deverá se dar à luz destes requisitos, porque se traduzem na razão maior a justificar uma medida liminar.
Forma e motivo foram os elementos arguidos pelo Ministério Público, que alegou tratarem de elementos dos atos administrativos que deveriam lastrear o zoneamento socioeconômico ecológico instituído pela Lei Estadual n. 9.523/2001.
Para análise no aspecto formal destes elementos, necessariamente esta decisão adentra a questões de Direito Administrativo para elucidar os motivos pelos quais se impõe a suspensão dos efeitos do ato e, em razão disto, vejo por bem invocar os ensinamentos da Dra. Maria Silvia Zanella Di Pietro, que com muita propriedade conceitua ato administrativo, quer seja na sua amplitude, quer seja, de forma restrita.
Num conceito amplo, Maria Silvia Z. Di Pietro diz que “o ato administrativo são todos os atos praticados pela Administração Pública; (Direito Administrativo, pg. 176) (grifei)
Depois diz: “Num conceito restrito, o ato administrativo é uma declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, sob regime jurídico de direito público, sujeito à lei e ao controle pelo Poder Judiciário.” (idem) (grifei)
É partindo desses conceitos, que indubitavelmente, tem-se que a lei em questão é um ato administrativo, e como tal é revestido dos atributos a ele inerentes e a sua validade está condicionada à inexistência de vícios que o maculam, sob pena de invalidação.
No caso, o suscitado dispositivo - Lei 9.523/2001 – também, malgrado tenha obedecido ao processo legislativo atinente à sua estrutura externa, não o fez em relação ao procedimento da sua criação atinente ao seu objeto, porquanto não foram observados os requisitos necessários que deveriam, indispensavelmente, preceder a sua criação, o que maculou a sua estrutura interna, que, indubitavelmente compromete a mens legis em razão do vício de forma que a cometeu, quando foi apresentado um projeto substitutivo integral, em relação ao primeiro, formulado à revelia de estudos técnicos sérios e inobservância das normas procedimentais, vindo desaguar também no reclamado vício pelo motivo, haja vista os pressupostos fáticos que autorizaram a edição do famigerado ato.
Em verdade, o que se verifica da análise dos argumentos ministerial e dos documentos colacionados, sobretudo dos estudos técnicos, é que, aparentemente, o Zoneamento Socioeconomico Ecológico não seguiu a forma procedimental prevista no Decreto Federal 4.297/02 e que os estudos e diagnósticos técnicos que lhe serviram de lastro não são condizentes com a realidade do nosso Estado.
Sobre o vício de forma, a Dra. Maria Silvia Zanella Di Pietro, na obra citada, ensina que: “O vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis a existência ou seriedade do ato (art. 2º, parágrafo único, b, da Lei n. 4.717)” (pg. 223). E mais, diz que “o ato é ilegal, por vício de forma, quando a lei expressamente a exige ou quando determinada finalidade só possa ser alcançada por determinada forma...” (grifei).
Outrossim, a exigência legal da forma do ato, na hipótese, caracteriza-o como ato vinculado às condições impostas pela lei, que, se não obedecidas, torna-o vicioso, podendo repercutir na sua invalidação, sem possibilidade de convalidação, porque atinge a sua origem, produzindo efeitos ex tunc.
Assim, em que pese tratar-se de uma decisão liminar, as alegações do Ministério Público são revestidas de verossimilhança suficiente para formar o convencimento deste magistrado sobre os vícios apontados
Analisar, entretanto, com profundidade, a forma procedimental e cada detalhe dos diagnósticos técnicos, seria adentrar ao mérito da ação, esvaziando-o na decisão liminar. Por isto, a análise se aterá aos pontos cruciais que demonstram a existência do fumus boni juris para efeito de concessão do pedido liminar.
Então vejamos. Consta dos autos que desde dezembro de 2002, com os estudos técnicos bastante avançados e sempre seguindo a orientação contida no Decreto Federal 4.297/02, foi instituída, por meio do Decreto Estadual n. 5.566/2002, a Comissão Estadual do Zoneamento Sócio-Econômico Ecológico, composta por representantes do Poder Executivo, Universidades e entidades não-governamentais.
Em agosto de 2004, depois de estudos e amplas discussões, o Poder Executivo encaminhou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei instituindo a “Política de Planejamento e Ordenamento Sustentado do Estado de Mato Grosso, projeto este que, um ano depois foi retirado do parlamento e promovida uma nova análise de todos os estudos anteriormente realizados, tendo sido, para esse fim, contratada a empresa EMBRAPA Solos. Com orientações desta empresa, operou-se uma ampla discussão técnica, envolvendo experts da SEMA, consultores contratados pelo Governo do Estado e integrantes da Comissão Estadual do Zoneamento Socioeconomico Ecológico, resultando na revisão das categorias e subcategorias de uso, bem como das diretrizes das zonas do ZSEE.
Daí que, em abril de 2008, após três anos de reavaliação, adequações e atualizações, o Poder Executivo encaminhou novamente à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei instituindo a “ Política de Planejamento e Ordenamento Territorial do Estado de Mato Grosso”, projeto este que foi reanalizado, dando causa a inúmeras audiências públicas, mas, em seu lugar foi apresentado um Substitutivo Integral, que foi, ao final, rejeitado.
Fato é que, após toda esta via sacra, foram apresentadas várias propostas substitutivas pelos membros do parlamento estadual, visando alterar àquele projeto anteriormente encaminhado à Assembleia, até que em 01/12/2010, depois de dois anos e meio de tramitação, foi aprovado um outro substitutivo integral apresentado pelas lideranças partidárias, o qual, em 20 de abril de 2011 foi sancionado pelo Governador do Estado.
Necessária esta breve retrospectiva do andamento dos projetos e propostas relativos ao ato legislativo ora impugnado, para explicar onde repousam as irregularidades que justificam e fundamentam o entendimento deste magistrado sobre a necessária concessão da liminar vindicada pelo Ministério Público.
Em resumo, o primeiro projeto apresentado pelo Executivo à Assembléia Legislativa foi fruto de estudos aprofundados, mais acurados, porquanto embasados em pesquisas de campo, onde houve a preocupação com a classificação pormenorizada das áreas, havendo revisão das categorias e subcategorias de uso, bem como no que se refere às diretrizes das zonas do ZSEE, enquanto que o projeto substitutivo foi elaborado de forma mais simplificada, direcionado em valorizar a produção, sem, no entanto, privilegiar as características naturais e particulares de cada área, assegurar, com primazia, a qualidade ambiental dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável, como orienta o Decreto Federal 4.297/02.
Essa forma poderia ser aproveitada, se no resultado não houvesse o comprometimento ambiental. No entanto, tudo o que foi atropelado e subjugado pelo projeto substitutivo, traz consequências nefastas, acaso mantida a lei aprovada do ZSEE-MT.
Na Lei Estadual 9.523/2011 há nítida falta de embasamento técnico e jurídico, além de evidente desrespeito ao comando inserto no Dec. Federal n. 4.297/2002, que orienta os zoneamentos no Brasil. Isto sem falar que foi elaborada em escala diversa (1:1.500.000 e não em 1:250.000). Verifica-se a aplicação inadequada da metolologia, porquanto não produz um zoneamento baseado em potencialidades e fragilidades; descaracteriza as categorias e zonas e define indicações de uso impróprias à vocação natural. Em verdade, é fácil verificar no corpo da lei que ela se fundamenta prioritariamente no uso e ocupação atual das terras e representa perda do patrimônio de biodiversidade e recursos naturais.
Toda esta gama de irregularidades distancia o real objetivo do zoneamento orientado pelo Decreto Federal n. 4.297/2002, tornando a Lei Estadual n. 9.523/2011 deveras questionável sob o aspecto de proteção do patrimônio ambiental de nosso Estado, que, como se sabe, tem alcance além de nossas fronteiras, em face da importância dos nossos recursos, sobretudo hídricos, na América do Sul.
Verifica-se, assim, que o perigo na demora de um provimento jurisdicional para suspender os efeitos dessa lei, está intimamente atrelado ao fumus boni juris, porque este é uma justificativa daquele.
Não há como negar, por exemplo, a ocorrência de efeitos imediatos com a aprovação da lei de zoneamento para a subcategoria de manejos específicos para a conservação e recuperação de recursos hídricos, porquanto estas áreas foram definidas em Mato Grosso por ser este um Estado exportador de águas para toda a América do Sul, abrangendo em seu território milhares de nascentes de três grandes bacias do continente: Amazônica, Platina e Araguaia-Tocantins, alimentadoras das áreas de recarga de aquíferos, responsáveis pela perenidade dos rios e regularização de suas vazões na época da estiagem, quando há escassez de chuvas durante cerca de quatro a seis meses.
O projeto substitutivo reduz 81,95% da área de conservação e recuperação dos recursos hídricos nessas regiões e são regiões onde se desenvolvem atividades agropecuárias, florestais, agroindustriais, dentre outras. Com a redução, o projeto restringe-se apenas às áreas de descarga ao longo de planícies de algumas bacias, e excluindo as áreas de recarga de aquíferos, não contribui para os objetivos para qual a subcategoria foi criada, inclusive excluindo das áreas remanescentes as restrições de uso mencionadas e gerando graves consequências socioambientais e econômicas como a) contaminação por agrotóxicos, que, indubitavelmente, irá gerar problemas à saúde humana e á fauna e flora; b) ocupação incorreta de ambientes de solos arenosos e de covoais com solos hidromórficos; c) haverá a contradição com as políticas estadual e nacional de recursos hídricos.
Numa versão mais apaixonada pela natureza, ÁVILA COIMBRA, ressalta que:
“Água, ar e solo são correntemente identificados como recursos. Na ordem do mundo natural, sem dúvidas, são recursos valiosos, indispensáveis, insubstituíveis: mesmo abióticos fazem parte da ‘teia da vida’. Têm seu tríplice valor: biológico, social e econômico. Entram nos processos vitais, nos sistemas de organização dos assentamentos humanos, na cadeia de produção de bens e serviços. Além disso, tais recursos dos ecossistemas desempenham funções específicas, reguladoras do equilibro ecológico através de um processo interativo tão admirável quão impossível de ser compreendido em toda a sua amplitude. É o mistério da Natureza que esconde o encantamento e a beleza profunda do planeta Terra; esconde-os aos olhares cobiçosos e materialistas, porém desvenda-os a quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir” São estes “olhos e ouvidos” que o Poder Judiciário precisa aguçar, de forma que a preservação do Meio Ambiente seja tutelada em toda a sua amplitude, abrangendo todos os aspectos, desde a mais suma importância física até os anseios paisagísticos e apaixonados da questão.
Abrir os olhos, lapidar a consciência e ouvir o apelo da vida! Se o magistrado não estiver preparado para agir desta forma, corre o risco de se ater ao formalismo processual em detrimento da questão ambiental e, consequentemente, do homem, da vida.
Felizmente, lembra o mencionado autor, quer no universo da ciência, quer no mundo do Direito, os suportes físico-químicos do Meio Ambiente passam a ter um tratamento em que considerações meramente pragmáticas de ‘recursos’ são atenuadas por abordagens de outras ordens. ‘Falta um pouco de amor nessa cadência’ (como diria Vinícius de Moraes) a fim de que os recursos naturais não sejam valorados somente pelo benefício físico e material que deles se espera, mas sejam devidamente valorizados pelo que são e pelo que simbolizam. Vejo ainda, que falta a idéia do que realmente é a vida e sobre a intensidade de se viver atrelados à natureza, sobretudo aos recursos hídricos, que sem exagero, constituem o homem. Afinal, a vida nasce da água, nela mergulha, transmite-se e se cultiva com ela. Continuo parafraseando o renomado Ávila Coimbra, que, tão sensivelmente, nos remete inclusive para Francisco de Assis, que em seu “Cântico das Criaturas” se refere à água como irmã, dizendo que é uma união muito mais íntima com o nosso próprio ser, porquanto está entranhada dentro de nós.
É isto! Os recursos hídricos que se vêm ameaçados com a concretização da política do zoneamento, tal como está, são, em verdade, de importância vital e dimensão que extrapola os limites do nosso Estado. Daí porque tamanha preocupação e cautela deste Juízo, a justificar a verossimilhança do direito invocado pelo autor.
Não bastassem, verifica-se que também as Áreas Protegidas Propostas na lei aprovada foram reduzidas em 85,20%, alterações drásticas que promoverão, sem dúvidas, a perda da biodiversidade em ambientes únicos e estratégicos para a conservação dos biomas mato-grossenses, transformando áreas anteriormente destinadas à manutenção das condições naturais em áreas de uso intensivo, fomentando o desmatamento e contaminação desses ambientes pelo uso indiscriminado de agrotóxicos. Além disto, outras políticas públicas de Mato Grosso serão afetadas diretamente com a aprovação da lei do zoneamento, como a Política de Conservação da Biodiversidade; referente ao percentual de área estabelecido pela Convenção de Biodiversidade para conservação dos Biomas; respingará no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e Queimadas do Estado – PPCDQ/MT; na Política de turismo; poderá haver perda de serviços ambientais de regulação, além dos serviços ecossistêmicos de suporte a muitas atividades humanas, como habitação, cultivo, recreação etc.
Aqui também cabe, oportunamente, o mesmo apelo em tom poético de Ávila Coimbra, que, sobre o solo, sensivelmente diz:“ Eis-nos sobre o solo. Dele saímos e para ele voltamos, não só em vôos, mas em mil oportunidades e de inumeráveis modos, pois com ele nos identificamos do nascimento à morte. O chão nos é apoio e sustento; sobre ele escrevemos mais tangivelmente a nossa história, e ele conserva o eco de centenas de milhares de gerações que passaram pelo mundo.
Acrescentaria que o chão, além de conservar o eco das gerações passadas, será palco de milhares de gerações futuras. Por isto, mais importante que a história que se registra, é o que nós – as presentes gerações, escreveremos e deixaremos para as futuras. O legado ambiental é nossa responsabilidade e vem, no caso, também refletido na forma como será dividido o solo, como serão tratados os recursos naturais que nele vivem. Depende de cada um de nós a qualidade do meio ambiente, a qualidade da vida futura.
Quanto a nós magistrados, que temos a oportunidade de decidir sobre a tutela do meio ambiente, a responsabilidade é consideravelmente maior, porquanto a atual conjuntura não admite equívocos, não tolera devaneio processual, tampouco que façamos vistas grossas ao emergente problema que se assola por conta do zoneamento tal como proposto e que está na iminência de ser levado avante.
Os pontos aqui destacados, além de serem resultado da análise dos autos, são também reflexo da experiência deste magistrado nas questões ambientais do Estado, o que permite a conclusão de que, de uma forma geral, as alterações promovidas pela Lei n. 9.523/2011 nas áreas protegidas propostas e na subcategoria de recursos hídricos estão correlacionadas, pois a conversão dos ambientes naturais e o uso inadequado do território na forma proposta na lei, afetarão consideravelmente a disponibilidade de água e biodiversidade, para atender os serviços ambientais e garantir a manutenção destes recursos.
Outrossim, essas alterações têm consequências graves para a sustentabilidade da produção agrícola e dos próprios processos ecológicos e serviços ambientais mantidos pelos diversos ecossistemas de Mato Grosso.
Mais grave ainda é concluir que a vigência desta lei, na forma como está, provocará um avanço do desmatamento, principalmente das áreas propostas para conservação, bem como das áreas de recarga de aquíferos, com perda do potencial ecológico do Estado, que garante a funcionalidade dos ecossistemas estaduais.
A gravidade e dimensão dos prejuízos que podem acarretar com a vigência dessa lei, por si só já justifica o provimento liminar, porque por se tratar de uma lei que define a política de planejamento e ordenamento territorial do estado, tanto para as atividades públicas, quanto privadas, o aguardo da instrução processual até julgamento final poderá provocar danos irreparáveis para o meio ambiente e também à economia estadual, afetando toda a sociedade, uma vez que estão a ela vinculados todos os programas e ações definidas nas políticas públicas, e, por isto, poderão ser projetados e executados de forma equivocada, em total desacordo com a realidade e vocação das diversas porções do território mato-grossense.
Com a perpetração dos equívocos, indubitavelmente, será obstado o acesso das presentes e futuras gerações aos bens e serviços naturais do nosso Estado, além de inviabilizar o desenvolvimento sustentável neste território.
É certo que, conforme demonstrado, aparentemente houve, de fato, os vícios de forma e motivo, capazes de viciar a lei, na qualidade de ato administrativo. No entanto, mais importante é que se por razão destes vícios, houve comprometimento dos bens e serviços naturais e do desenvolvimento sustentável, logo, há o risco de comprometimento da vida humana. Este é, então, o argumento mais forte que, mais que permitir, impõe a concessão da medida liminar, na forma pleiteada pelo Ministério Público.
Os vícios num ato administrativo são passíveis de correção pelas mais diversas vias. Por outro lado, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é uma garantia constitucional, e a vida, como bem maior, lateja pela continuidade e não permite equívocos, tampouco pode esperar toda a marcha processual, para ter garantida a tutela judicial.
Forte, então, nestas razões, DEFIRO A LIMINAR pleiteada pelo Ministério Público, para determinar a imediata suspensão dos efeitos dos dispositivos da Lei Estadual n. 9.523/2011 que instituíram o Zoneamento Socioeconômico Ecológico, mais precisamente, dos art. 10, “caput” e os incisos I e II do seu parágrafo 1º; Arts. 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 20, 21, 22 e 23.
Intime-se o requerido para, querendo, complementar a defesa, no prazo legal. Após, intime-se o Ministério Público para impugnar a ação.
Cumpra-se.
Alega o autor que a lei em questão trouxe no seu bojo, como instrumento principal, o Zoneamento Socioeconômico Ecológico e, por se tratar de zoneamento ambiental (latu sensu), a forma, ou seja, o rito procedimental a ser adotado está definido no Decreto Federal 4.297/02 que, enquanto regra geral, veio regulamentar o art. 9º, inciso II, da Lei no 6.938/81 ao passo que o motivo, enquanto circunstância fática que lhe deu suporte, é representado pelos estudos e diagnósticos técnicos que possibilitaram sua elaboração.
Os estudos técnicos que teriam dado lastro à elaboração do Zoneamento Socioeconômico Ecológico, inserido na Lei estadual 9.523/2011, segundo as argüições ministerial, são inconsistentes, além de se mostrarem repletos de erros metodológicos, posto que não foram atendidas as normas procedimentais previstas no Decreto Federal 4.297/2002.
Essas circunstâncias, sustentou o Ministério Público, viciam, ao mesmo tempo, a forma e o motivo do ato e, portanto, invalidam o Zoneamento Ecológico Socioeconômico.
Argumentando a presença dos requisitos autorizadores, requer a concessão de liminar para que seja determinada a imediata suspensão dos efeitos daqueles dispositivos apontados na inicial, até que seja julgado, definitivamente, o mérito desta demanda.
Instruiu os autos com os documentos de fls.104-1162.
Instado a se manifestar a respeito do pleito liminar (fls. 1164), o Estado de Mato Grosso, por meio do seu procurador (fls. 1168-1180), sustenta o descabimento da ação civil pública para impugnar o ato legislativo; que os vícios apontados poderiam, em tese, caracterizar inconstitucionalidade; defende a ausência de interesse processual e, no mérito, argumenta a ausência de plausibilidade do direito invocado e a presunção de legitimidade do ato administrativo, requerendo, portanto, seja indeferida a liminar pleiteada.
É o que merece registro.
DECIDO.
A questão sobre a qual versa a lide é, de fato, de grande relevância para o Estado de Mato Grosso no aspecto não só ambiental, mas também econômico e sociopolítico, porquanto diz respeito ao zoneamento como instrumento fundamental para a política de planejamento e ordenamento territorial que, como se sabe, em nosso Estado, gera inúmeros conflitos e questionamentos nas mais diversas áreas, em razão do interesse privado que, na hipótese, vem tomando dimensões maiores que deveria, em detrimento do interesse coletivo e, sobretudo do vital interesse ambiental.
A pretensão do Ministério Público é de toda louvável, porque visa à legalidade e lisura na política desse planejamento territorial.
Antes, porém, de adentrar à análise da existência ou não dos requisitos autorizadores da concessão da medida liminar vindicada, é preciso caracterizar a natureza da norma combatida, para que não reste dúvida alguma da legitimidade do Ministério Público de contestar seu teor em juízo, ou da adequação da via eleita para tanto.
Um dos princípios mais fundamentais do estudo das leis são suas características; toda norma legal que inova no mundo jurídico deve ter caráter abstrato, geral e hipotético. A Lei 9.523/2011, todavia, é formalmente uma lei de efeitos concretos e, substancialmente, um verdadeiro ato administrativo, já que não apresenta nenhuma das características de norma jurídica a não ser sua promulgação por órgão competente e as etapas legislativas. A lei institui, entre outras providencias, a “Política de Planejamento e Ordenação Territorial do Estado de Mato Grosso”, delimitando os espaços geográficos das categorias e subcategorias de uso, gerando, daí, efeitos concretos, posto que assim, vincula conteúdos materialmente administrativos, produzindo efeitos imediatos, dispensando qualquer outro ato para se tornar concretamente eficaz . Portanto, não possui o caráter de generalidade e de abstração comum à maior parte das leis existentes.
A propósito, tem-se a lição do renomado Hely Lopes Meirelles:
Por leis e decretos de efeitos concretos entendem-se aqueles que trazem em si mesmos o resultado específico pretendido (...). Tais leis ou decretos nada têm de normativos; são atos de efeitos concretos, revestindo a forma imprópria de lei ou decreto por exigências administrativas. Não contém mandamentos genéricos, nem apresentam qualquer regra abstrata de conduta; atuam concreta e imediatamente como qualquer ato administrativo de efeitos individuais e específicos, razão pela qual se expõem ao ataque pelo mandado de segurança (RT 242/314, 289/152, 291/171, 441/66) (pela ação popular e pela ação civil pública também) (grifamos)
É evidente que a Lei 9.523/2011, que instituiu a “Política de Planejamento e Ordenação Territorial do Estado de Mato Grosso”, é ato normativo de efeito concreto. Desta forma, sendo, tão-somente lei de efeito concreto, com o correspondente resultado previamente determinado, contendo deliberação específica, e que se materializa em mero ato administrativo revestido das formalidades inerentes à Lei Ordinária, eis que carece de generalidade e abstração comum a maior parte das leis existentes, inquestionável é a possibilidade de sua invalidação pelo Poder Judiciário, através da presente Ação Civil Pública.
Pois bem, uma vez demonstrada a adequação da via eleita pelo órgão ministerial, se impõe a análise dos requisitos para a concessão do pedido liminar.
O Ministério Público apontou vícios de forma e motivo do ato impugnado, a fim de justificar o fumus boni juris, e, após uma detida e minuciosa análise de toda a documentação trazida aos autos, vejo que razão assiste ao Parquet.
Pois bem. É bem verdade, porquanto ficou demonstrado à satisfação, que existem dois procedimentos distintos que desaguaram na lei em questão. Um primeiro, realizado pelo Executivo e outro pela Assembleia Legislativa, e é sobre este último que o Ministério Público contesta os pontos que constituíram os vícios objeto da ação.
Em que pesem os ensinamentos doutrinários, fiel entendimento sobre o conceito e objetivo do Zoneamento Socioeconômico Ecológico, se extrai dos art. 2º e 3º, respectivamente, do Decreto Federal n. 4.297/02, que diz:
“Art.2º... Instrumento de organização do território a ser obrigatoriamente seguido na implantação de planos, obras e atividades públicas e privadas, estabelece medidas e padrões de proteção ambiental destinados a assegurar a qualidade ambiental dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável e a melhoria das condições de vida da população.” (grifamos)
“Art. 3º. O ZEE tem por objetivo geral organizar, de forma vinculada, as decisões dos agentes públicos e privados quanto a planos, programas, projetos e atividades que, direta ou indiretamente, utilizam recursos naturais, assegurando a plena manutenção do capital e dos serviços ambientais dos ecossistemas.” (grifamos)
Da leitura do texto legal, é fácil concluir que o ZEE é um instrumento inteiramente voltado para a melhoria da questão ambiental e totalmente comprometido com a manutenção do capital e dos serviços ambientais dos ecossistemas, sobretudo com o desenvolvimento sustentável. Sendo assim, a análise dos vícios apontados na lei pelo Ministério Público deverá se dar à luz destes requisitos, porque se traduzem na razão maior a justificar uma medida liminar.
Forma e motivo foram os elementos arguidos pelo Ministério Público, que alegou tratarem de elementos dos atos administrativos que deveriam lastrear o zoneamento socioeconômico ecológico instituído pela Lei Estadual n. 9.523/2001.
Para análise no aspecto formal destes elementos, necessariamente esta decisão adentra a questões de Direito Administrativo para elucidar os motivos pelos quais se impõe a suspensão dos efeitos do ato e, em razão disto, vejo por bem invocar os ensinamentos da Dra. Maria Silvia Zanella Di Pietro, que com muita propriedade conceitua ato administrativo, quer seja na sua amplitude, quer seja, de forma restrita.
Num conceito amplo, Maria Silvia Z. Di Pietro diz que “o ato administrativo são todos os atos praticados pela Administração Pública; (Direito Administrativo, pg. 176) (grifei)
Depois diz: “Num conceito restrito, o ato administrativo é uma declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, sob regime jurídico de direito público, sujeito à lei e ao controle pelo Poder Judiciário.” (idem) (grifei)
É partindo desses conceitos, que indubitavelmente, tem-se que a lei em questão é um ato administrativo, e como tal é revestido dos atributos a ele inerentes e a sua validade está condicionada à inexistência de vícios que o maculam, sob pena de invalidação.
No caso, o suscitado dispositivo - Lei 9.523/2001 – também, malgrado tenha obedecido ao processo legislativo atinente à sua estrutura externa, não o fez em relação ao procedimento da sua criação atinente ao seu objeto, porquanto não foram observados os requisitos necessários que deveriam, indispensavelmente, preceder a sua criação, o que maculou a sua estrutura interna, que, indubitavelmente compromete a mens legis em razão do vício de forma que a cometeu, quando foi apresentado um projeto substitutivo integral, em relação ao primeiro, formulado à revelia de estudos técnicos sérios e inobservância das normas procedimentais, vindo desaguar também no reclamado vício pelo motivo, haja vista os pressupostos fáticos que autorizaram a edição do famigerado ato.
Em verdade, o que se verifica da análise dos argumentos ministerial e dos documentos colacionados, sobretudo dos estudos técnicos, é que, aparentemente, o Zoneamento Socioeconomico Ecológico não seguiu a forma procedimental prevista no Decreto Federal 4.297/02 e que os estudos e diagnósticos técnicos que lhe serviram de lastro não são condizentes com a realidade do nosso Estado.
Sobre o vício de forma, a Dra. Maria Silvia Zanella Di Pietro, na obra citada, ensina que: “O vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis a existência ou seriedade do ato (art. 2º, parágrafo único, b, da Lei n. 4.717)” (pg. 223). E mais, diz que “o ato é ilegal, por vício de forma, quando a lei expressamente a exige ou quando determinada finalidade só possa ser alcançada por determinada forma...” (grifei).
Outrossim, a exigência legal da forma do ato, na hipótese, caracteriza-o como ato vinculado às condições impostas pela lei, que, se não obedecidas, torna-o vicioso, podendo repercutir na sua invalidação, sem possibilidade de convalidação, porque atinge a sua origem, produzindo efeitos ex tunc.
Assim, em que pese tratar-se de uma decisão liminar, as alegações do Ministério Público são revestidas de verossimilhança suficiente para formar o convencimento deste magistrado sobre os vícios apontados
Analisar, entretanto, com profundidade, a forma procedimental e cada detalhe dos diagnósticos técnicos, seria adentrar ao mérito da ação, esvaziando-o na decisão liminar. Por isto, a análise se aterá aos pontos cruciais que demonstram a existência do fumus boni juris para efeito de concessão do pedido liminar.
Então vejamos. Consta dos autos que desde dezembro de 2002, com os estudos técnicos bastante avançados e sempre seguindo a orientação contida no Decreto Federal 4.297/02, foi instituída, por meio do Decreto Estadual n. 5.566/2002, a Comissão Estadual do Zoneamento Sócio-Econômico Ecológico, composta por representantes do Poder Executivo, Universidades e entidades não-governamentais.
Em agosto de 2004, depois de estudos e amplas discussões, o Poder Executivo encaminhou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei instituindo a “Política de Planejamento e Ordenamento Sustentado do Estado de Mato Grosso, projeto este que, um ano depois foi retirado do parlamento e promovida uma nova análise de todos os estudos anteriormente realizados, tendo sido, para esse fim, contratada a empresa EMBRAPA Solos. Com orientações desta empresa, operou-se uma ampla discussão técnica, envolvendo experts da SEMA, consultores contratados pelo Governo do Estado e integrantes da Comissão Estadual do Zoneamento Socioeconomico Ecológico, resultando na revisão das categorias e subcategorias de uso, bem como das diretrizes das zonas do ZSEE.
Daí que, em abril de 2008, após três anos de reavaliação, adequações e atualizações, o Poder Executivo encaminhou novamente à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei instituindo a “ Política de Planejamento e Ordenamento Territorial do Estado de Mato Grosso”, projeto este que foi reanalizado, dando causa a inúmeras audiências públicas, mas, em seu lugar foi apresentado um Substitutivo Integral, que foi, ao final, rejeitado.
Fato é que, após toda esta via sacra, foram apresentadas várias propostas substitutivas pelos membros do parlamento estadual, visando alterar àquele projeto anteriormente encaminhado à Assembleia, até que em 01/12/2010, depois de dois anos e meio de tramitação, foi aprovado um outro substitutivo integral apresentado pelas lideranças partidárias, o qual, em 20 de abril de 2011 foi sancionado pelo Governador do Estado.
Necessária esta breve retrospectiva do andamento dos projetos e propostas relativos ao ato legislativo ora impugnado, para explicar onde repousam as irregularidades que justificam e fundamentam o entendimento deste magistrado sobre a necessária concessão da liminar vindicada pelo Ministério Público.
Em resumo, o primeiro projeto apresentado pelo Executivo à Assembléia Legislativa foi fruto de estudos aprofundados, mais acurados, porquanto embasados em pesquisas de campo, onde houve a preocupação com a classificação pormenorizada das áreas, havendo revisão das categorias e subcategorias de uso, bem como no que se refere às diretrizes das zonas do ZSEE, enquanto que o projeto substitutivo foi elaborado de forma mais simplificada, direcionado em valorizar a produção, sem, no entanto, privilegiar as características naturais e particulares de cada área, assegurar, com primazia, a qualidade ambiental dos recursos hídricos e do solo e a conservação da biodiversidade, garantindo o desenvolvimento sustentável, como orienta o Decreto Federal 4.297/02.
Essa forma poderia ser aproveitada, se no resultado não houvesse o comprometimento ambiental. No entanto, tudo o que foi atropelado e subjugado pelo projeto substitutivo, traz consequências nefastas, acaso mantida a lei aprovada do ZSEE-MT.
Na Lei Estadual 9.523/2011 há nítida falta de embasamento técnico e jurídico, além de evidente desrespeito ao comando inserto no Dec. Federal n. 4.297/2002, que orienta os zoneamentos no Brasil. Isto sem falar que foi elaborada em escala diversa (1:1.500.000 e não em 1:250.000). Verifica-se a aplicação inadequada da metolologia, porquanto não produz um zoneamento baseado em potencialidades e fragilidades; descaracteriza as categorias e zonas e define indicações de uso impróprias à vocação natural. Em verdade, é fácil verificar no corpo da lei que ela se fundamenta prioritariamente no uso e ocupação atual das terras e representa perda do patrimônio de biodiversidade e recursos naturais.
Toda esta gama de irregularidades distancia o real objetivo do zoneamento orientado pelo Decreto Federal n. 4.297/2002, tornando a Lei Estadual n. 9.523/2011 deveras questionável sob o aspecto de proteção do patrimônio ambiental de nosso Estado, que, como se sabe, tem alcance além de nossas fronteiras, em face da importância dos nossos recursos, sobretudo hídricos, na América do Sul.
Verifica-se, assim, que o perigo na demora de um provimento jurisdicional para suspender os efeitos dessa lei, está intimamente atrelado ao fumus boni juris, porque este é uma justificativa daquele.
Não há como negar, por exemplo, a ocorrência de efeitos imediatos com a aprovação da lei de zoneamento para a subcategoria de manejos específicos para a conservação e recuperação de recursos hídricos, porquanto estas áreas foram definidas em Mato Grosso por ser este um Estado exportador de águas para toda a América do Sul, abrangendo em seu território milhares de nascentes de três grandes bacias do continente: Amazônica, Platina e Araguaia-Tocantins, alimentadoras das áreas de recarga de aquíferos, responsáveis pela perenidade dos rios e regularização de suas vazões na época da estiagem, quando há escassez de chuvas durante cerca de quatro a seis meses.
O projeto substitutivo reduz 81,95% da área de conservação e recuperação dos recursos hídricos nessas regiões e são regiões onde se desenvolvem atividades agropecuárias, florestais, agroindustriais, dentre outras. Com a redução, o projeto restringe-se apenas às áreas de descarga ao longo de planícies de algumas bacias, e excluindo as áreas de recarga de aquíferos, não contribui para os objetivos para qual a subcategoria foi criada, inclusive excluindo das áreas remanescentes as restrições de uso mencionadas e gerando graves consequências socioambientais e econômicas como a) contaminação por agrotóxicos, que, indubitavelmente, irá gerar problemas à saúde humana e á fauna e flora; b) ocupação incorreta de ambientes de solos arenosos e de covoais com solos hidromórficos; c) haverá a contradição com as políticas estadual e nacional de recursos hídricos.
Numa versão mais apaixonada pela natureza, ÁVILA COIMBRA, ressalta que:
“Água, ar e solo são correntemente identificados como recursos. Na ordem do mundo natural, sem dúvidas, são recursos valiosos, indispensáveis, insubstituíveis: mesmo abióticos fazem parte da ‘teia da vida’. Têm seu tríplice valor: biológico, social e econômico. Entram nos processos vitais, nos sistemas de organização dos assentamentos humanos, na cadeia de produção de bens e serviços. Além disso, tais recursos dos ecossistemas desempenham funções específicas, reguladoras do equilibro ecológico através de um processo interativo tão admirável quão impossível de ser compreendido em toda a sua amplitude. É o mistério da Natureza que esconde o encantamento e a beleza profunda do planeta Terra; esconde-os aos olhares cobiçosos e materialistas, porém desvenda-os a quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir” São estes “olhos e ouvidos” que o Poder Judiciário precisa aguçar, de forma que a preservação do Meio Ambiente seja tutelada em toda a sua amplitude, abrangendo todos os aspectos, desde a mais suma importância física até os anseios paisagísticos e apaixonados da questão.
Abrir os olhos, lapidar a consciência e ouvir o apelo da vida! Se o magistrado não estiver preparado para agir desta forma, corre o risco de se ater ao formalismo processual em detrimento da questão ambiental e, consequentemente, do homem, da vida.
Felizmente, lembra o mencionado autor, quer no universo da ciência, quer no mundo do Direito, os suportes físico-químicos do Meio Ambiente passam a ter um tratamento em que considerações meramente pragmáticas de ‘recursos’ são atenuadas por abordagens de outras ordens. ‘Falta um pouco de amor nessa cadência’ (como diria Vinícius de Moraes) a fim de que os recursos naturais não sejam valorados somente pelo benefício físico e material que deles se espera, mas sejam devidamente valorizados pelo que são e pelo que simbolizam. Vejo ainda, que falta a idéia do que realmente é a vida e sobre a intensidade de se viver atrelados à natureza, sobretudo aos recursos hídricos, que sem exagero, constituem o homem. Afinal, a vida nasce da água, nela mergulha, transmite-se e se cultiva com ela. Continuo parafraseando o renomado Ávila Coimbra, que, tão sensivelmente, nos remete inclusive para Francisco de Assis, que em seu “Cântico das Criaturas” se refere à água como irmã, dizendo que é uma união muito mais íntima com o nosso próprio ser, porquanto está entranhada dentro de nós.
É isto! Os recursos hídricos que se vêm ameaçados com a concretização da política do zoneamento, tal como está, são, em verdade, de importância vital e dimensão que extrapola os limites do nosso Estado. Daí porque tamanha preocupação e cautela deste Juízo, a justificar a verossimilhança do direito invocado pelo autor.
Não bastassem, verifica-se que também as Áreas Protegidas Propostas na lei aprovada foram reduzidas em 85,20%, alterações drásticas que promoverão, sem dúvidas, a perda da biodiversidade em ambientes únicos e estratégicos para a conservação dos biomas mato-grossenses, transformando áreas anteriormente destinadas à manutenção das condições naturais em áreas de uso intensivo, fomentando o desmatamento e contaminação desses ambientes pelo uso indiscriminado de agrotóxicos. Além disto, outras políticas públicas de Mato Grosso serão afetadas diretamente com a aprovação da lei do zoneamento, como a Política de Conservação da Biodiversidade; referente ao percentual de área estabelecido pela Convenção de Biodiversidade para conservação dos Biomas; respingará no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e Queimadas do Estado – PPCDQ/MT; na Política de turismo; poderá haver perda de serviços ambientais de regulação, além dos serviços ecossistêmicos de suporte a muitas atividades humanas, como habitação, cultivo, recreação etc.
Aqui também cabe, oportunamente, o mesmo apelo em tom poético de Ávila Coimbra, que, sobre o solo, sensivelmente diz:“ Eis-nos sobre o solo. Dele saímos e para ele voltamos, não só em vôos, mas em mil oportunidades e de inumeráveis modos, pois com ele nos identificamos do nascimento à morte. O chão nos é apoio e sustento; sobre ele escrevemos mais tangivelmente a nossa história, e ele conserva o eco de centenas de milhares de gerações que passaram pelo mundo.
Acrescentaria que o chão, além de conservar o eco das gerações passadas, será palco de milhares de gerações futuras. Por isto, mais importante que a história que se registra, é o que nós – as presentes gerações, escreveremos e deixaremos para as futuras. O legado ambiental é nossa responsabilidade e vem, no caso, também refletido na forma como será dividido o solo, como serão tratados os recursos naturais que nele vivem. Depende de cada um de nós a qualidade do meio ambiente, a qualidade da vida futura.
Quanto a nós magistrados, que temos a oportunidade de decidir sobre a tutela do meio ambiente, a responsabilidade é consideravelmente maior, porquanto a atual conjuntura não admite equívocos, não tolera devaneio processual, tampouco que façamos vistas grossas ao emergente problema que se assola por conta do zoneamento tal como proposto e que está na iminência de ser levado avante.
Os pontos aqui destacados, além de serem resultado da análise dos autos, são também reflexo da experiência deste magistrado nas questões ambientais do Estado, o que permite a conclusão de que, de uma forma geral, as alterações promovidas pela Lei n. 9.523/2011 nas áreas protegidas propostas e na subcategoria de recursos hídricos estão correlacionadas, pois a conversão dos ambientes naturais e o uso inadequado do território na forma proposta na lei, afetarão consideravelmente a disponibilidade de água e biodiversidade, para atender os serviços ambientais e garantir a manutenção destes recursos.
Outrossim, essas alterações têm consequências graves para a sustentabilidade da produção agrícola e dos próprios processos ecológicos e serviços ambientais mantidos pelos diversos ecossistemas de Mato Grosso.
Mais grave ainda é concluir que a vigência desta lei, na forma como está, provocará um avanço do desmatamento, principalmente das áreas propostas para conservação, bem como das áreas de recarga de aquíferos, com perda do potencial ecológico do Estado, que garante a funcionalidade dos ecossistemas estaduais.
A gravidade e dimensão dos prejuízos que podem acarretar com a vigência dessa lei, por si só já justifica o provimento liminar, porque por se tratar de uma lei que define a política de planejamento e ordenamento territorial do estado, tanto para as atividades públicas, quanto privadas, o aguardo da instrução processual até julgamento final poderá provocar danos irreparáveis para o meio ambiente e também à economia estadual, afetando toda a sociedade, uma vez que estão a ela vinculados todos os programas e ações definidas nas políticas públicas, e, por isto, poderão ser projetados e executados de forma equivocada, em total desacordo com a realidade e vocação das diversas porções do território mato-grossense.
Com a perpetração dos equívocos, indubitavelmente, será obstado o acesso das presentes e futuras gerações aos bens e serviços naturais do nosso Estado, além de inviabilizar o desenvolvimento sustentável neste território.
É certo que, conforme demonstrado, aparentemente houve, de fato, os vícios de forma e motivo, capazes de viciar a lei, na qualidade de ato administrativo. No entanto, mais importante é que se por razão destes vícios, houve comprometimento dos bens e serviços naturais e do desenvolvimento sustentável, logo, há o risco de comprometimento da vida humana. Este é, então, o argumento mais forte que, mais que permitir, impõe a concessão da medida liminar, na forma pleiteada pelo Ministério Público.
Os vícios num ato administrativo são passíveis de correção pelas mais diversas vias. Por outro lado, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é uma garantia constitucional, e a vida, como bem maior, lateja pela continuidade e não permite equívocos, tampouco pode esperar toda a marcha processual, para ter garantida a tutela judicial.
Forte, então, nestas razões, DEFIRO A LIMINAR pleiteada pelo Ministério Público, para determinar a imediata suspensão dos efeitos dos dispositivos da Lei Estadual n. 9.523/2011 que instituíram o Zoneamento Socioeconômico Ecológico, mais precisamente, dos art. 10, “caput” e os incisos I e II do seu parágrafo 1º; Arts. 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 20, 21, 22 e 23.
Intime-se o requerido para, querendo, complementar a defesa, no prazo legal. Após, intime-se o Ministério Público para impugnar a ação.
Cumpra-se.
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